Renan Vicente da Silva
Uma carta para o novo coronavírus que está salvando minha existência
Querido, novo coronavírus
Escrevo esta carta para compartilhar algumas transformações e inquietações promovidas por ti nesse último ano com sua presença em nossas existências. Em um primeiro momento apresenta-se estranho escrever para um agente biológico que provocou a morte de milhares de pessoas ao redor do mundo. E as pessoas se questionarem: como esse vírus que matou e continua matando pode ter salvado a sua vida? Acredito que poderei ser julgado por esta escrita, mas preciso estabelecer essa convexão contigo, indo além da contaminação biológica. Você é um ser que sobrevive na linha tênue da vida e a morte, pois muitas pessoas cientistas não o consideram um ser vivo, poucas acreditam que é. Já que só conseguem respirar através da hospedagem no corpo de outros seres, vestindo formas que não fazem parte de ti. Esse estar no mundo promove um certo diálogo com as vivências negras desumanizadas no mundo branco, as quais precisam também vestir outras roupagens, como as máscaras brancas para serem humanos.
Na tentativa de encontrar palavras escritas para explicar como tu salvou e continua salvando minha vida, preciso primeiramente, compartilhar breves pensamentos e sentimentos sobre o momento atual. As mais de 500 mil vidas- encantadas da pandemia, foram tombadas diante de uma política genocida, intencional e criminosa do governo federal brasileiro. Esse estado da morte é responsável pela potencialização da circulação de ti nos vários horizontes do nosso país, para que assim se alcance a utópica imunidade de rebanho. Então, você por si só, não ocasionou essas milhares de mortes, mas sim uma conjunção de fatores e interesses mórbidos do sistema capitalista-neoliberal. A economia financeira sempre teve mais prioridade que a vida, e penso que isso dificilmente mudará na sociedade de consumo asfixiante. E é dentro desse contexto que você está, um simples organismo microscópico unicelular, o qual enxergo como uma defesa da mãe natureza frente a nossa destruição consumista contínua de todas as fontes de vida, em nome do dinheiro matamos e morremos diariamente.
E como você salvou minha vida? Bom, são várias as maneiras que a pandemia provocada por ti, ecoaram na minha jornada existencial. Me despertou para uma completa ausência de sentido nas minhas movimentações, não conseguia mais acordar e ir para a universidade opressora de desejos e sonhos. Era uma asfixia diária tentar respirar nos tempos pré-pandêmicos, na angústia dos deslocamentos diários pela ponte Rio-Niterói. Confesso para ti, que algumas vezes, até pensava em mergulhar nas águas da Baía de Guanabara e nunca mais retornar para esses processos de morte silenciosos. Você produziu vida em mim, ao mesmo tempo que produzia morte em tantas outras pessoas. Essa contradição é central nesta escrita. E por meio dela consegui enxergar em ti, algo além da perspectiva biológica reducionista. Talvez seja porque estou alcançando visões afrodiaspóricas do mundo colonial que habito, uma outra cosmologia lateja no meu corpo, que está numa transição de morte para vida. E tu está me auxiliando nessa jornada, mesmo não possuindo tanta consciência disso, preciso dizer muito obrigado. A gratidão é uma forma de bem-viver, aprendi com as vidas indígenas, nas breves escutas e leituras, pois sabem conviver com um ecossistema em harmonia, respeito e agradecimento contínuo aos seres e não-seres encantados da floresta.
Eu, minha mãe e pai, de muitas outras formas, somos gratos a ti. E termos a coragem de compartilhar esse agradecimento é essencial. Nosso modo de vida saiu de um adoecimento financeiro, com endividamentos insanos, para uma ressignificação para com o dinheiro. Começamos a enxergar além de seus limites, encontrando potências em nosso lar, o quanto um quintal pode ser produtor de vidas. E nesse devir proporcionado pela sua presença, na pandemia protagonizada pelo agente viral que és, estamos inseridos numa distopia que nos convoca para uma posição de luta nos diversos campos, possíveis e impossíveis, aí a imaginação alcança uma centralidade única e singular. Você pode está proporcionando uma libertação de futuro que Nós, enquanto viventes em um mundo em colapso nunca conseguimos fluir, a rachadura está posta.
Entre tantas mudanças proporcionadas pela pandemia desenvolvida diante da sua propagação para os vários mundos. A possibilidade de retornar para casa, no interior da Mata Atlântica, foi extraordinário e insurgente. Já que estou conseguindo ver e viver além da cegueira branca produtivista-capitalista, e enxergando as potências das relações dengosas, de apreciar e sentir os pequenos momentos do dia, como um banho de sol. Não consigo mais voltar para a ditadura do “novo normal”, pois estou morrendo para renascer numa orgânica forma de existência. Esse foi um primeiro passo para romper as mortes institucionais e sociais que estamos sufocados, sem qualquer direito para respirar. As rachaduras desencadeadas por você são uma oportunidade de fim do mundo moderno controlador para libertação de futuros, agora cada um de Nós, dentro das nossas individualidades, podemos aproveitar esse momento. Criar opções de vidas, é criar opções de futuros, aqui e agora.
Não poderia terminar esta carta sem compartilhar uma triste notícia que me chegou, da internação de uma querida tia, uma das sete irmãs de minha mãe. Ela está infectada por você, não sei qual a dimensão sistêmica do quadro clínico, porém é muito difícil acompanhar, mesmo que de forma distanciada, esse crítico momento da sua vida corporal. Desejo imensamente que minha tia continue respirando. E não te culpo, novo coronavírus, pois és apenas uma reação imunológica de um planeta que não suporta mais nossa presença destrutiva. Somos corpos estranhos-individualistas num ecossistema aconchegante-solidário, gratidão por nos recordar dessa indigesta verdade. Um afetuoso abraSUS e xêro! Com dengo,
Renan Vicente da Silva
Ipiabas, 15 de julho de 2021