top of page
  • Foto do escritorRenan Vicente da Silva

Um canto negro em descanso: a voz de Elza Soares nos despertou para vida




A morte de Elza Soares é uma tristeza coletiva para os vários Brasis. Do Planeta Fome em que sobrevivemos. Sua voz ecoou no além mar, do Atlântico Negro para os vastos territórios brasileiros. Escutamos com muito conforto e desconforto suas poesias-musicais. Uma mãe afro-diaspórica e originária que acolheu e aconchegou gerações de povos negros e indígenas, dentro de uma sociedade brutalmente racista. Ao me colocar diante de suas músicas sou envolvido por energias transcendentais. Da ancestralidade negra intencionalmente apagada da minha existência. Enorme gratidão, Elza!


Não irei ousar escrever sobre sua historiografia, já que é algo impossível pelas minhas singelas palavras. Mas quero compartilhar o quanto esteve presente em mim. Você forjou meu corpo. Ao me lembrar que a carne negra é a mais barata do mercado. Ao se colocar como a mulher do fim do mundo. E reconhecer esse lugar de fala e luta. Ao ser a primeira mulher intérprete de escola de samba, pela Mocidade de Padre Miguel. Ao gritar as felicidades e dores de sermos negros viventes num mundo branco-colonial. Sua presença enquanto uma mulher negra na centralidade, produz uma inspiração e ação revolucionária para criarmos outras possibilidades de futuros. Como gostaria de ter estado num show, apresentação, desfile, ou qualquer outra aproximação ao seu lado. Me sinto envolto em um misto de sensações. Como escrevo este parágrafo diretamente para ti. Acredito que esteja em Orum sendo guiada por Oxóssi aos recantos mais aconchegantes do plano espiritual. Sua vida foi intensa. Sua divindade foi central. Sua morte foi serena.


Assim como escreveu com muita sinceridade e potência, a jornalista e encantadora, Flávia Oliveira:


“Elza partiu súbita e serenamente como cabe aos merecedores. Teve existência completa. Amou e sofreu e pariu e enterrou e bateu e apanhou e brigou e aproveitou e riu e chorou e ganhou e gastou e cresceu e envelheceu. Morreu aos 91 anos, 70 de carreira, na métrica temporal que pactuamos, porque nem a vida nem a obra de Elza cabem nesses intervalos. Ela própria nunca tratou da idade, definia-se atemporal. Tinha consciência de que sempre existiu, porque tudo o que passou não dá conta de uma encarnação. Elza Soares, Exu que é, pertence ao ontem, ao hoje, ao amanhã.”

A nossa Exu, Elza Soares, rompe com qualquer temporalidade linear. Sua existência foi repleta de rupturas constantes. A maior cantora dos Brasis que amou e sofreu. Sentiu no seu corpo as violências do machismo e racismo. E viveu mais de nove décadas, algo que foge completamente das estatísticas, principalmente para as mulheres negras. Mas retorna ao lugar negro ao precisar de pessoas brancas para viabilizar seu talento artístico, o qual é orgânico com o respirar de Elza. Para ser vista no país doente pelo racismo. No final, fratura toda lógica colonial ao re-alcançar seu ápice pela oitava década de vida. Ocupando espaço em todos os festivais possíveis, nacionais e internacionais, com seu trono ocupando centralidade no palco. Sua corporalidade dançante sempre fortaleceu sua voz cantante. Que sempre estremeceu as estruturas postas, permitindo o caminhar para outras possibilidades existenciais.


Deusa Elza Soares! Nunca serás esquecida nos milhares de corações e mentes que pulsam por ti. Me coloco como uma dessas pessoas que ecoará sua lembrança, pelo pouco que te conheci, mas que ainda continuo aprendendo. Em cada música, entrevista, documentário que deixou para Nós. Você é verdadeiramente a Mulher do Fim do Mundo. Do fim do mundo racista e machista. Permitindo desabrocharmos para confluências coletivas-solidárias. Num afro-futurismo insurgente e desobediente, como foste em toda sua vida. A gratidão que habita em mim é sincera e simples. Sua morte é vida. Siga com muito axé!



Ipiabas, 22 de janeiro de 2022

bottom of page