Renan Vicente da Silva
O racismo que sustenta as universidades brasileiras [filme: ‘M8 – Quando a morte socorre a vida’]
Atualizado: 23 de mar. de 2021

Nesta escrita irei tecer algumas afetações e despertares diante da narrativa construída na história-cinematográfica, M8 – Quando a morte socorre a vida (Jeferson De, 2019). Uma potente oportunidade para provocarmos discussões sobre a centralidade do racismo no cotidiano universitário, sendo um espaço concebido em maioria por pessoas brancas que ocupam as estruturas de poder nesses meios acadêmicos, na perpetuação da colonialidade. Contudo, nos tempos atuais, em consequência das cotas raciais, começa um conviver com os corpos marginalizados, principalmente negros, enquanto alunos, não sendo apenas os faxineiros ou em outros serviços servis para branquitude. Alcançando uma maioria nas universidades públicas e gratuitas brasileiras, todavia ainda é muito perceptível a desigualdade racial nos cursos mais elitistas, como a medicina e seus processos de silenciamento interno sobre a ferida colonial.
Nessa perspectiva, o filme provoca para um imediato tensionamento das linhas tênues do racismo que embasa nossa universidade, nos seus saberes concebidos na apropriação não apenas cultural, mas também dos corpos negros, do período escravocrata até a contemporaneidade. E esse é o ponto mais interessante da narrativa, os corpos mortos do anatômico são negros, os indigentes, sem histórias que mesmo após tombados servem para os brancos explorarem suas entranhas, sem qualquer responsabilização. No momento que o único aluno negro do curso de medicina adentra nesse lugar é produzido de forma direta um desconforto, tão naturalizado no mundo branco, porém indigerível na sua negritude. E se questiona: por que todos os corpos mortos dissecados são negros? Uma inquietação que transborda para mim no hoje, que no passado não compartilhei com minha professora branca-francesa, mas senti um estranho desconforto de revirar os interiores do corpo negro-morto-dissecável.
Outras questões raciais são abordadas além dos muros da universidade, na sociedade brasileira, que vive na cegueira do “racismo sem racistas”, de Eduardo Bonilla-Silva. A cena mais evidente dessa afirmação, é a ida do protagonista negro na casa da namorada branca, em existe uma necessidade da discussão da relação inter-racial, contudo irei me ater aos olhares racistas na casa colonial da zona sul carioca. Nesse momento, compreendemos que existe um limite para ‘mistura’ do povo brasileiro, sendo inadmissível uma relação com um negro, e ainda mais inaceitável esse homem negro estar cursando medicina no mesmo espaço que a filha branca. Esse é o desconforto da burguesia periférica brasileira racista que sonha no devir europeu em seus sangues e territórios, porém tentam e falham diariamente nessa utopia colonial. E os corpos que tombam nessa busca são os corpos negros-favelados. Na mesma cena observamos o racismo proveniente da empregada negra, num evidente repúdio e medo diante de um homem negro transgredir seu local ás margens e se deslocar ao centro. É a ideia de raça criada pelo branco surtindo resultados, na manutenção da estrutura de superioridades brancas e inferioridades negras.
As forças policiais figuram o papel de ‘caçadores-do-mato’, os mesmos que buscavam os escravos fugidos nos tempos passados, ainda promovem essa caça ao corpos negros. E no momento que o homem negro, estudante de medicina, está se deslocando pela zona sul carioca após uma festa, é violentamente abordado pela polícia, e salvo pelos brancos colegas de turma, nos privilégios de si. Essa é a realidade cotidiana de ser negro em uma sociedade culturalmente racista. Logo após essa violência física e simbólica, a dor do racismo grita, e no aconchego da mãe consegue ter cuidado. Além da compreensão que nossos passos vem de longe, não caminhamos sós, mas na coletividade, resistência e resiliência dos nossos povos negros espalhados na diáspora.
No final, me encantei com o desfecho da jornada para alcançar a identidade de M-8, o corpo negro-indigente do anatômico acadêmico, sendo essa uma necessidade vital para o estudante negro de medicina. E na última cena sentimos uma verdadeira união da negritude no acolher e cuidar de nós, um aquilombamento dengoso. A possibilidade do enterro digno daquele que, provavelmente, nunca viveu e nem morreu de forma digna. Existe um esperançar latente em nossos corpos negros afro-diaspóricos juntos, que permite continuarmos de pé como árvore, como um Baobá.
Ipiabas, 11 de fevereiro de 2021