Renan Vicente da Silva
Meu aniversário de morte e vida
No dia 05 de maio de 2021, despertei para mais um ciclo de sobrevivência, buscando formas de respirar nos corpos forjados ao longo das minhas fases da vida. Desde a ingênua infância, perpassando pela utópica adolescência até a idealizada exploração adulta. Um misto de sensações me envolveram nesse dia, em especial devido ao contexto delicado que estava inserido. Já que uma semana antes, minha mãe havia sido internada no hospital local, com um quadro grave de anemia. Seu rio de sangue, que flui nas suas veias e artérias, estava secando. Foram dias de muitas incertezas e culpas. Como nos tornamos cegos? Uma certa cegueira branca, como descrita por José Saramago, um homem branco do centro colonial, na qual possuímos visão, mas não enxergamos. Esse é um dos grandes males do mundo colonial, da universalidade branca em detrimento da diversidade colorida. Nessa cegueira, vamos seguindo nossas vidas produtivas fúteis, sem sentimentos e pensamentos. Apenas tentando sobreviver em cada amanhecer. Dentro dessa podridão existencial, não consegui ver minha mãe adoecendo diante de mim, ao meu lado. E percebo que continuo cego, numa constante luta para enxergar.
Sobreviver no fim dos mundos é algo que nossos povos originários vivenciaram e vivenciam constantemente. Acredito que vivemos ou já passamos do fim, não consigo enxergar muitas possibilidades de futuros para nós, estamos em ruínas. Pensar nisso após completar mais um ciclo de vida é significativo. As relações são tão líquidas que não conseguimos sentir suas presenças, pois desaparecem na fluidez do imediatismo. Um mundo líquido de pessoas líquidas, como nos alerta Zygmunt Bauman, um outro homem branco que compreende essas estratégias perversas e atuais da elite branca para acumulação de mais capital. É muito triste não conseguir cultivar círculos saudáveis de pessoas queridas, sinto muitas saudades de experienciar os corpos presentes. Isso vai muito além dos tempos pandêmicos que sobrevivemos. Estamos tão fragmentados nas mídias sociais, esperando as notificações de aniversário, já que não anotamos essas datas em locais preciosos, desse modo, na ausência desses avisos esquecemos das outras pessoas. Como fui esquecido por muitas e lembrando por poucas. Estamos doentes procurando gente nessas plataformas digitais, nas quais existem apenas ecos solitários. Tenho uma percepção que a morte é uma linha tênue que esgarçamos diariamente na sociedade de consumo, sem muitas vezes percebermos. Nossa saúde mental está em colapso, pois nos consumimos até não restar qualquer essência, em prol de sermos reduzidos no fazer dinheiro. Não suporto mais as pressões produtivistas, que reforçam nossa doença capitalista-neoliberal, é necessário nomear nosso câncer social, aqui e agora. Nesse sistema a morte é central, enquanto a vida é periférica.
Os aniversários são sempre momentos para comemorarmos, não da forma fútil que colocaram em nossas mentes, com várias festas superficiais, mas sim para relembrarmos nossas existências e resistências. Nesse sentido, alcancei meus 24 anos num corpo negro afro-diaspórico, homossexual, vegetariano, um tanto confuso quanto aos caminhos de possibilidades, assim como, tantas outras curvas que ainda não possuo consciência. E estar a partir dessa corporeidade, mesmo com certos privilégios. É um ativismo natural que transcende de mim, do menino tímido para a pessoa escritora do hoje, de volta ao mesmo lar que nasci, envolto pela resiliente Mata Atlântica, vou criando rachaduras para novas construções. Sendo assim, me descobrir nas palavras escritas foi extraordinário e revolucionário, uma maneira de vazão dos pensamentos e sentimentos que transbordam. Além de fornecer sentido num mundo sem sentidos. E preciso te questionar: qual é o sentido da sua vida? Muitas vezes não nos perguntamos, e morremos sem nunca ao mesmo termos realmente existido. As datas de aniversário são para provocar inquietações e não acomodações.
No atualidade, estou muito triste e angustiado, pelas condições de saúde da minha mãe, pelas relações líquidas, pelos genocídios da pandemia. Me sinto um corpo inerte no furacão de acontecimentos, parece que não estou agindo para criação de mudanças. Peço desculpas aos povos brasileiros pela minha ausência nas ruas, no último dia 19 de junho de 2021, que ecoaram um grito coletivo de esperançar, contra o antipresidente genocida Bolsonaro. Não é mais possível permanecermos em silêncio na segurança de nossas aprisionantes casas. Todavia, não estou conseguindo encontrar energia em mim. Um corpo morto é onde me encontro nesse momento, na verdade, é como me sinto, apesar de nunca ter morrido. Um estar pouco ativo, pouco presente, pouco vivo. Me sinto sem ar para respirar, essa ausência de oxigênio vai além da pandemia. Apenas se agudizou nos tempos de lucidez propiciados pelo novo coronavírus, um alerta da mãe natureza, de que não somos o centro do planeta. Devemos reconhecer nossas fragilidades e vulnerabilidades, ou o amanhã será tarde demais.
Talvez eu esteja caminhando para o fim do mundo fantasioso implantado em nossas mentes, de que somos seres livres e felizes. Na possibilidade de decretar esse fim, preciso escrever sob meu corpo morto para poder renascer em outras potências, me tornar encantado-divino em vida. Deixar minha ancestralidade africana-indígena alcançar centralidade. E nesse devir, uma certeza já possuo, descolonizar meu corpo morto não é mais uma opção, é uma necessidade de sobrevivência. Esse movimento orgânico é urgente. Só assim conseguirei enxergar novamente minha mãe, e desabrocharei para a verdadeira vida.
Ipiabas, 21 de junho de 2021