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  • Foto do escritorRenan Vicente da Silva

Diário de uma quarentena: um sentir para construir um amanhã possível para viver

Atualizado: 4 de nov. de 2021


Desenho da resistente floresta que vivo desde minha infância em Ipiabas.

O começo de minha quarentena se dá no dia 16 de março de 2020. Há mais de três meses estou em meu lar. Em Ipiabas. Uma resistência de Mata Atlântica que faz parte de mim. Ao saber que retornaria sem ter previsão de volta me provocou uma enorme felicidade. Estava no limite da minha vida de ir e vir. De um estágio que não fornecia sentido para mim. Precisava viver essa paragem. De estar ao lado de pessoas amadas. Minha mãe e pai. Que me promovem um fortalecimento emocional que estava demandando. E tudo mudou. Não tinha mais que viver a angústia do deslocamento diário pela ponte Rio-Niterói. Do medo constante de ser assaltado. Do medo constante de ser vulnerável. Do medo constante de ser morto. A morte e vida são linhas tênues para corpos negros na cidade desigual e racista do Rio de Janeiro. Um reflexo de país escravocrata. A pandemia me colocou em quarentena privilegiada na minha casa. Assim não posso deixar de perguntar: Quem pode ficar em casa? E para quem ficar em casa é seguro?


Esses tempos de ser mais fixo do que fluxo estão me proporcionando sentir para existir. Esse parar é central na minha vida. Estou em um constante pensar e repensar de mim. Da sociedade burguesa falida que estou inserido. Habitar um mundo que não existe mais. Mas que insiste em existir com seus ritos sociais fúteis. Um fim do mundo já é uma realidade. O capitalismo não deu certo. E vive de crises e mais crises. Numa reinvenção destrutiva que chegará em um ponto de inflexão. Sinta o colapso climático que nos envolve. Nossos limites materiais nesse mundo estão postos. A cegueira branca de Saramago é um sinal do falir do iluminismo. A razão pela razão nos destruiu. Não somos os dominadores máximos da natureza. Somos parte da natureza. Não haverá “novo normal”, pois nunca houve normalidade. O ‘povo mercadoria’ que somos precisa declarar morte para sermos outras possibilidades. De trilharmos nos caminhos dos sentimentos. Das afetações e acolhimentos mútuos.


Nesse período que pude respirar distante dos espaços asfixiantes. Estou conseguindo promover uma jornada em minhas subjetividades. Nos mares das incertezas que vivem em mim. Em um estado de solidão. Um só no meio e contra uma multidão. E assim consegui experimentar um brotar para o sentir. Dessa forma, no início da quarentena fui tecendo algumas redes coletivas. Com algumas pessoas próximas e outras mais distantes. Precisava me movimentar para semear. Para fornecer sentido ao meu ser. E me colocar posto para escutar e falar. Em uma troca de saberes sensíveis e críticos. Estar ao lado dessas pessoas nas redes tem me potencializado emocionalmente. Uma outra movimentação que tem preenchido meu vazio existencial. É a escrita de cartas afetivas. As palavras escritas no papel das lembranças e sentires com o outro. E poder ler essas cartas e afetar. Me provoca uma sensação de bem-estar. Uma felicidade verdadeira que nunca senti em minha vida. Me torno um ser ainda mais esvaziado para permitir conter mais afetações. Somos seres relacionais. Não conseguimos viver sem tecer laços humanos. E essa sociedade falida nos impõem o valor do humano em dinheiro que gera mais dinheiro. Devemos renunciar diante dessa lógica que nos torna coisas matáveis em um guerrear de nós contra nós mesmos. Uma competição destrutiva que silencia qualquer possibilidade de sentir e ser com o outro.


Estar vivendo na temporalidade e expressão sentimental das cartas está sendo para mim um agir diante do fim do mundo. Esse olhar para o lado. De resgatar os laços afetivos tecidos ao longo de minha breve existência. É um renunciar ao sistema capitalista que produz morte dos corpos disfuncionais. Basta. Agora choro no e pelo mundo depressível e melancólico que sobrevivo. É preciso deixar as lágrimas transbordarem de mim. A realidade é muito dolorosa, mas está posta. Não posso acreditar em alternativas dentro desse sistema. Um movimento de emancipação já está em curso no meu ser. Um caminho de sentir é no que acredito para sermos outra sociedade possível. Um sentir individual. Um sentir em comunhão. Um sentir para ser humano. Quais são seus caminhos na busca do vir a ser?


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