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  • Foto do escritorRenan Vicente da Silva

As várias existências possíveis [série: ‘Todxs Nós’]



HBO/ divulgação

Nesta escrita irei promover algumas apreensões e afetações sobre a envolvente narrativa, Todxs Nós (Vera Egito e Daniel Ribeiro, 2020). Essa produção me encontrou numa leitura serena da coluna de cultura do El País, fui alcançado de imediato pela criação. E o que torna ainda mais significativa esta ligeira resenha, é estarmos no mês do orgulho LGBTQIA+, devido ao dia 28 de junho de 1969, a data em que a rebelião dos corpos não-heteronormativos ecoou em Stonewall, principalmente, com a liderança de Marsha P. Johnson, uma mulher trans negra insurgente e revolucionária. Esse bar da cidade de Nova Iorque, era o único espaço possível para as existências dissidentes ao padrão imposto, assim, frente as forças policiais violentas e repressoras, ocorreu um levante dos corpos oprimidos. Não podemos nunca esquecer dessa história, uma das várias lutas que permitiram que transbordássemos dos armários sociais, na busca por direito para respirar no mundo. A construção de memória é um ato político que precisamos realizar cotidianamente para libertação de futuros.

A série retrata de forma bastante simples e grandiosa, alguns corpos transgressores da sociedade tradicional brasileira. Em destaque para a protagonista, uma pessoa não-binária, totalmente invisibilizada no mundo binário, o qual é dividido e reduzido em gênero masculino e feminino. E tristemente é também bastante silenciada dentro do movimento LGBTQIA+. Ao acompanhar sua jornada de vida desperta um processo de desconstrução para construção de uma outra maneira de ver e enxergar as diversas existências, iniciando uma ruptura das correntes de gênero. Descobrindo que existe uma infinidade de caminhos de possibilidades, na potência da vida. Alguns acontecimentos vivenciados são compartilhados por muitas outras pessoas, como o deslocamento do interior para capital, em que acreditamos respirar num território mais progressista nos costumes, contudo não é uma verdade. Esse mito das cidades cosmopolitas, de que acolhem todas as formas de existências e culturas, é destruído ao longo do enredo da série. A avançada tecnológica São Paulo é uma trituradora de sonhos e esperanças. Apresar desse fato estar fortemente presente nos episódios, conseguimos sentir muita vida no apartamento densamente povoado por samambaias e outras plantinhas, além da aconchegante rede de dormir na sala. Uma oca urbana construída por um casal de amigues, um homossexual frustrado com o futuro nas artes cênicas e a outra uma mulher negra envolta nas movimentações feministas, que se veem aprendendo sobre o universo não-binário.

Um ponto que considero essencial, dentro desse percurso de aprendizagem, foi a centralidade da discussão sobre os pronomes neutros. Desde o título da série até os diálogos entre as pessoas personagens, com as dificuldades para desconstruir o sistema de significação dos gêneros, é algo que tenciona nossa língua colonial-binária portuguesa. Essa transgressão permite que existências silenciadas possam transbordar para criação de suas histórias por meio de uma fala e escrita mais acolhedora e representativa. Também vamos fluindo no reconhecimento da pessoa protagonista, de alguns certos privilégios que possui diante de um escutar as vivências de outras pessoas trans, não-binárias, queers e outras potências encapsuladas. E me inquieta que mesmo habitando corpos minoritários socialmente, existem tantos outros ainda mais vulnerabilizados. A consciência do nosso ser e estar no mundo é uma experiência mutável constantemente. Tanto que nos momentos finais da temporada, e espero que as próximas possam desabrochar brevemente, a pessoa protagonista não binária, se reconhece no gênero masculino, pelo soar do pronome ele/ dele. Permitir esses fluxos existenciais é como liberar as águas de rios vivos aprisionados em barragens conservadoras.



Ipiabas, 30 de junho de 2021





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