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  • Foto do escritorRenan Vicente da Silva

As lutas indígenas pelas terras originárias-ancestrais



É necessário começar este texto com as lúcidas palavras de Antônio Bispo dos Santos, nosso mais velho, Nêgo Bispo, um líder quilombola, e mesmo que não seja um indígena, apresenta uma existência confluente e insurgente, que nos alerta:


“Tanto os quilombolas quanto os indígenas do Brasil só passaram a ser sujeitos de direito na Constituição de 1988. Até essa Constituição, ser quilombola era ser criminoso e ser indígena era ser selvagem. A Constituição de 1988 disse que nós temos direito a regularizar as nossas terras pela escrita – o que é uma agressão, porque pela escrita nós passaríamos a ser proprietários da terra. Mas os nossos mais velhos nos ensinaram a lidar com essa agressão.” (SANTOS, 2018)

Nesse sentido, nos últimos dias estão acontecendo as maiores mobilizações indígenas desde a constituinte de 1988 em Brasília, em que Ailton Krenak, inspiradora liderança indígena ecoou seu falar e pintar enlutado na câmara federal brasileira, a qual pela primeira vez teve um indígena na tribuna, que encantou e inquietou:


“Assegurar para as populações indígenas o reconhecimento aos seus direitos originários às terras em que habitam - e atentem bem para o que digo: não estamos reivindicando nem reclamando qualquer parte de nada que não nos cabe legitimamente e de que não esteja sob os pés do povo indígena, sob o habitat, nas áreas de ocupação cultural, histórica e tradicional do povo indígena. Assegurar isto, reconhecer às populações indígenas as suas formas de manifestar a sua cultura, a sua tradição, se colocam como condições fundamentais para que o povo indígena estabeleça relações harmoniosas com a sociedade nacional, para que haja realmente uma perspectiva de futuro de vida para o povo indígena, e não de uma ameaça permanente e incessante.”

E ele continua nos despertando para a realidade:


“O povo indígena tem um jeito de pensar, tem um jeito de viver, tem condições fundamentais para a sua existência e para a manifestação da sua tradição, da sua vida, da sua cultura, que não coloca em risco e nunca colocaram a existência, sequer, dos animais que vivem ao redor das áreas indígenas, quanto mais de outros seres humanos. Creio que nenhum dos Senhores poderia jamais apontar atos, atitudes da gente indígena do Brasil que colocaram em risco, seja a vida, seja o patrimônio de qualquer pessoa, de qualquer grupo humano neste País. Hoje somos alvo de uma agressão que pretende atingir, na essência, a nossa fé, a nossa confiança. Ainda existe dignidade, ainda é possível construir uma sociedade que saiba respeitar os mais fracos, que saiba respeitar, aqueles que não têm dinheiro, mas mesmo assim, mantem uma campanha incessante de difamação. Um povo que sempre viveu à revelia de todas as riquezas, um povo que habita casas cobertas de palha, que dorme em esteiras no chão, não deve ser de forma nenhuma contra os interesses do Brasil ou que coloca em risco qualquer desenvolvimento. O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil.”

Essa presença de uma liderança indígena no centro, produziu um potente ato simbólico de resistência e existência das vozes silenciadas. Numa urgente e emergente ocupação do território central do poder político colonial brasileiro produtor de mortes, mas que os povos originários levantaram um acampamento, com mais de 6.000 indígenas de 170 etnias, o qual foi nomeado de “Luta pela vida”, pois eles realmente são os guardiões das vidas. Essas movimentações decorrem da iminente decisão que será proferida pelos corpos brancos do judiciário brasileiro, na figura institucional do Supremo Tribunal Federal (STF), os quais desconhecem qualquer saber e viver além das palavras escritas no papel, porém mesmo assim, decidirão sobre a tese do marco temporal. Essa anomalia jurídica-inconstitucional, objetivamente, determina que os territórios indígenas são apenas os demarcados após 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Cidadã. E desse modo, não considera os vários anos de invasão e destruição das terras indígenas desde 1500, promovidos pelos colonizadores europeus, e consecutivamente por outros colonos-estupradores, como os latifundiários, grileiros, garimpeiros, milicianos, militares e, principalmente, o canceroso agronegócio na atualidade, dentro de um sistema de opressão capitalista-colonial.


Dentro desse contexto, indo para uma perspectiva mais subjetiva-sensível é importante lembrarmos que a terra que pisamos, aqui e agora, é indígena. Não existe canto e recanto no Brasil que não seja dos povos originários. E esses espaços ancestrais não estão à venda, na verdade nunca estiveram, contudo, as forças asfixiantes do capital matam toda possibilidade de vida orgânica. Essa contaminação está exterminando as existências e vivências indígenas num irreversível processo genocida e etnocida das pluralidades de etnias que forjam nossas memórias ancestrais. Sinto o sangue escorrer pelas minhas palavras escritas, ao ver as mortes dos mais velhos numa pandemia intencional e criminosamente descontrolada pelo anti-governo brasileiro, em evidência, nas aldeias e comunidades tradicionais. Todavia, essa não foi a primeira doença do mundo branco colonial que contaminou e matou os povos indígenas, evidenciando um projeto de morte, uma necropolítica, bastante efetiva e sistemática. Algo que dialoga intensamente com os povos negros afro-diaspóricos, os quais também tombam diariamente, sendo assim, habitamos em condições de vulnerabilidades semelhantes. Fomos trazidos escravizados de África, sobrevivemos ao Atlântico negro e as senzalas, e conseguimos criar os quilombos. E a partir desse local confluímos nossas lutas, num essencial aquilombamento sensível-afetivo, para provocarmos uma desobediência civil a fim de alcançarmos as centralidades de nossas vivências, na constituição dos verdadeiros povos brasileiros. Cada vez mais possuo a percepção de que a união indígena-negra é um dos caminhos postos para provocarmos rachaduras na lógica mortífera-colonial.


Um ponto que produz muitas angústias em mim, é a anestesia coletiva das pessoas diante da maior mobilização indígena, mas logo me recordo da estratégica invisibilidade midiática. Essa mesma que sustenta as várias abordagens falaciosas do agronegócio para manutenção de suas lucratividades. Nesse cenário, não existe outra alternativa, a não ser despertarmos para fora das nossas zonas de conforto fúteis na sociedade de consumo. Faz parte do projeto de morte o silenciamento das vozes dissonantes-dissidentes diante da realidade colonial, a fim de apagar suas histórias e narrativas. Entretanto, precisamos nos descolonizar para produzirmos possibilidades outras de futuros. E desse modo, desejo trazer, de forma muito singela e sincera, algumas outras vozes indígenas. Essas que estão mais próximas do que imaginamos, porém, não nos foram ensinadas nas escolas. Já que existe uma narrativa dominante de que as vidas indígenas não existem mais, sendo declarado como seres mitológicos-selvagens de um país neuroticamente embranquecido. Sem qualquer preocupação com as nossas histórias ancestrais, essa é uma violenta estratégia da colonialidade, que oprime as existências não-brancas. Dentro desse contexto, é mais que urgente agirmos e fluirmos nos percursos decoloniais. Sendo assim, nos últimos dias, estive em aproximação com viveres e saberes que despertam para outras viabilidades de olhares e sentires, por meio do escutar as histórias do jongo-caxambu em diálogo com a nação indígena Puri nas terras do médio Paraíba, região fluminense do estado do Rio de Janeiro (RJ), a qual foi tão violentada e oprimida pelo colonialismo-escravocrata-cafeeiro.


Nesses caminhares decoloniais a partir desse local, fui me envolvendo pelas histórias não contadas, principalmente, pela proximidade com as movimentações de Kandú Puri (@kandupuri), Kaê Guajajara (@kaekaekae) e Abimael Salinas (@abimaelsalinas), da etnia Potyguara. Essas pessoas são artistas indígenas-independentes-insurgentes, os quais povoam suas existências-resistências pela musicalidade-oralidade, em destaque por meio do RAP e a performance visual. Estão ocupando com muita potência e significado as plataformas digitais para ecoarem suas vozes na virtualidade. Dessa maneira, gostaria de compartilhar brevemente suas presenças indígenas, nesta minha singela escrita. Assim, uma primeira criação, das várias que existem, mas a que se articula intensamente com o contexto pandêmico atual, é o “RAP INDÍGENA TRILÍNGUE SOBRE A PANDEMIA DO CORONA VÍRUS”, escrito e cantado por Kandú Puri e Kaê Guajajara, no qual peço que se permitam ler, escutar e sentir:


“Não foi só a bala que matou meu povo não

Tanta epidemia amontoou mais de uma nação

Um rio de sangue na água cristalina

Até o contato com suas roupas me assassina


Andando na minha miséria

Na mente lapsos de uma velha floresta

Tô tipo uma onça rugindo da cela

Indígena gritando na favela

Vendo culturas inteiras sumindo

A epidemia vem matando

O maior grupo de risco há mais de 500 anos


Eu tentei, me isolei

E sempre ficam nessa de querer fazer contato

Nume'e kwaw hehe, a'e rupi nuexak kwaw

ima'eahy haw

(Ele não viu ele, por isso não viu sua doença)


Nuvem de doença que contagia

Causando falência múltipla de órgãos

Eu tava na mata vem e me mata numa

Falência múltipla de povos

Vi um parente indo se lavar

Num grande rio de lama tóxica

Prevenir ou se contaminar

Isso é uma guerra biológica

E tu que nunca foi de banho

Tá aprendendo a lavar a mão

Vai, compra tudo de álcool em gel

Olha pra tua poluição


Ah ando ure day gran txori ï pa omi xute txahe Kapuna prika ï ambo nam ah ando heta kran

Ah ando hon upolatxa-ma tigagika tangweta

Ah ando hon upolatxa-ma ï ne pa kwandom-na


(eu corri nessa mata para ter um bem viver

tiros para morrer. eu escapei. eu estive escondido igual sombra. eu estive escondido para não ter doença)


Não foi só a bala que matou meu povo não

Tanta epidemia amontoou mais de uma nação

um rio de sangue na água cristalina

Até o contato com suas roupas me assassina


Como a varíola

Como a gripe

Tantas que o tamui suportou

Ninguém solta a mão de ninguém

Ainda bem que ninguém segurou


Amo teko uzeeng ihewe hekepe

(Alguém está falando comigo no sonho)

Akizezo mae wi nehe

(Não tenha medo das coisas)

Epita me neràpuz pupe

(Fica em casa)


Ah ando hon upolatxa-ma tigagika tangweta

Ah ando hon upolatxa-ma ï ne pa kwandom-na"



É sempre um misto de sensações e revoluções que ecoam em mim ao ler e escutar essas palavras. Já que confirma a podridão e destruição do “povo da mercadoria”, expressão de Davi Kopenawa, inspiradora liderança indígena, o qual reafirma que somos nós, doentes pelo dinheiro, os produtores de pandemias e mortes. Seres que tentamos sobreviver numa sociedade em consumo insano de si e de outras possibilidades de vidas. E uma outra criação artística do Abimael Salinas, em que coloca seu corpo num encantador vídeo-performance, intitulado de "Herança Banhada", no qual narra os primeiros contatos entre os mundos, do homem branco colonizador e o não-branco colonizado. Indo para uma discussão sobre a masculinidade patriarcal a partir de um corpo indígena, algo tão asfixiante e opressor, que alcança centralidade na inquietante e necessária produção. Ainda mais envolvente pelas imagens e filmagens, as quais minhas limitadas palavras escritas não conseguem descrever, assim, se permitam ver e sentir.


Este texto é uma simples maneira de expressar minha enorme angústia pela ausência do direito de respirar dos povos indígenas. Se exterminarem os guardiões da floresta não haverá nenhuma possibilidade de amanhãs. Será o fim da humanidade. É um alerta que precisa incomodar nosso interior mais profundo para gerar despertares coletivos, pois apenas redes de solidariedades são capazes de derrubarem mitos e capitais. Meu corpo negro afro-diaspórico está posto para confluir na luta indígena, pelos seus territórios originários, em que assentamos nossos terreiros e quilombos. A energia do axé nos uniu e continuaremos juntes, nos reconectando com as forças e espíritos da natureza.



Referências:


1. SANTOS, Antonio Bispo. Somos da terra. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 12, página 44 - 51, 2018.


2. DIÁRIO DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE (Suplemento "B"). Brasília, páginas 572 e 573, 27 de janeiro de 1988.



Ipiabas, 09 de setembro de 2021




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