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  • Foto do escritorRenan Vicente da Silva

As dores que nos despertam para a vida

Atualizado: 4 de nov. de 2021


A obra de arte "Coluna Quebrada" de Frida Kahlo que foi criada em 1944.

O despertar do dia 29 de junho de 2020 ocorreu com um grito de dor. Uma dor que emanava de meu pai. Uma dor abdominal aguda e intensa. Uma dor para sentir o corpo que habita. Uma dor que sinaliza para a ação. Era uma dor referida à esquerda. Sem dor à palpação. Contínua e forte. Com vômitos múltiplos. Um sentir dor dos corpos frágeis dos homens. Uma fragilidade silenciada, mas biologicamente comprovada. Os corpos das mulheres são mais resistentes e potentes. E por isso são controlados na sociedade machista que vivemos. Recomendei que fôssemos para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) recém nascida em nossa cidade. Ele me informou que não estava conseguindo se deslocar. Uma possível perda de consciência poderia ser presente devido ao estado de desidratação. Uma fraqueza que, também, evidencia nossa fragilidade enquanto seres humanos. Me solicitou para chamar uma ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192). Esse direito à saúde é possível no Brasil devido à luta por uma saúde pública e gratuita. Evidenciada no nascer do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1988. Se vivêssemos, por exemplo, nos Estados Unidos da América (EUA), meu pai iria preferir permanecer com dor e, até, morrer em casa devido aos altos custos de uma saúde privada. Devemos acolher e agradecer todos os dias de nossas vidas pelo existir do SUS. Essa foi a primeira vez em minha vida que realizei essa ligação. Nunca tinha realizado esse movimento. Era algo diferente e incerto para mim. Apesar de habitar em um espaço de formação para ser um profissional da saúde. Era uma novidade que estava posta nesse fatídico dia de inverno no sul-fluminense.


No momento que chegou a ambulância do SAMU fiquei um tanto apreensivo sobre quais seriam os processos que se desencadeariam a partir daquele momento. Em seu interior havia duas pessoas. Uma enfermeira e um motorista. Pararam próximo de nossa casa. E promoveram os primeiros cuidados diante da dor excruciante emanada. Enquanto estavam sendo prestados essa triagem. O motorista viu que havia vários abacates no abacateiro do nosso lar e perguntou se tinha algum caído pelo chão. De imediato fui até minha mãe para comunicar sobre essa demanda imprevisível. Em seguida fomos até o pé de abacate. Ao mesmo tempo meu pai estava ecoando suas dores. Foi engraçado e inesperado essa solicitação. A gente espera profissionais desesperados e sobrecarregados pelo trabalho constante no serviço de urgência. Mas nos deparamos com uma outra realidade. Apresentavam uma sensibilidade durante todo processo de avaliação inicial com uma leveza de serem e fazerem saúde. Sempre em constante diálogo sobre cada movimentação nas suas condutas clínicas. E no final chegaram a conclusão da necessidade de irmos para a UPA para tratamento desse quadro de intensa dor abdominal. Uma despedida carinhosa e gratificante de minha mãe foi realizada pelo motorista da ambulância através de uma paradinha e um buzinar em frente ao nosso portão. Uma felicidade preencheu o coração de minha mãe.


No deslocamento para o centro de nosso município. Em Barra do Piraí. Um ir de mais de 13 quilômetros de distância para chegarmos na UPA. Fomos contemplados por uma outra parada do motorista no posto para ir ao banheiro. E meu pai continuava verbalizando sua dor contínua. Seguimos pelas curvas acentuadas da Serra das Minhocas. Ou chamada de rodovia das Trovas, pois apresenta em seu trajeto placas com várias escritas de Orlando Riccieri. Uma delas de despedida para os que se vão: “Com a bondade que você traz, / Chegando onde a gente mora, / Quando partir leve muita paz/ Muita sorte pela vida afora.” Um dos recados do poeta para os que vão de nosso lar. De Ipiabas. Uma viagem poética para os que transitam nesse caminho que respira Mata Atlântica. O caminhar lento da ambulância demonstrava uma leveza diante da urgência que emanava de meu pai. Não interpretei como um descaso, já que o quadro clínico estava estável mesmo com o relato de intensa dor. Era um descer profundo na contemplação da natureza que fornece nosso suporte de oxigênio. Estamos nos consumindo nesse viver Antropoceno. Devemos dizer um basta. Não somos superiores aos seres não-humanos e a mata. Fazemos parte dessa comunhão. E precisamos habitar em simbiose com os sentires e viveres da floresta.


Chegamos na inédita UPA que encontra-se anexa ao Hospital Nova Santa Casa de Barra do Piraí. Sendo uma unidade hospitalar gerida por uma irmandade católica que, recentemente, no atual governo municipal. Obteve uma ajuda financeira para um processo de restruturação física dos espaços da enfermaria, Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) e polo de emergência. Esse último torna-se a UPA. Nosso munícipio não possui hospital próprio. Ainda vive em um sistema de saúde fragmentado gerido pela assistência filantrópica-religiosa dos tempos passados anteriores ao SUS. No qual ocorre uma dificuldade de diálogo entre as unidades e os níveis de atenção em saúde por não ter uma Rede de Atenção à Saúde (RAS). Esse tipo de sistema ineficiente que é centralizado em postos de saúde e hospitais filantrópicos não é viável para atender as demandas em saúde que emergem de nosso perfil epidemiológico dos dias de hoje. Esse não existir uma porta de entrada para acesso ao SUS pelas Clínicas da Família na Atenção Primária à Saúde (APS) provocam filas que enfrentamos para ter um atendimento. E apresenta um aumento nos custos em cuidado diante dos vários agravamentos de condições crônicas que poderiam ser acompanhadas caso tivéssemos uma APS construída e estruturada em Barra do Piraí.


Ao adentrarmos nos interiores da UPA fui direcionada para a recepção. E ao mesmo tempo tinha que manter elevado o soro que estava hidratando meu pai. Diante desse contexto, um segurança solidário e sensível nos guiou para a sala de medicação. Como afirma Gilberto Gil: “Nós somos potência solidária”. Nesse espaço o deixei e retornei para concluir o preenchimento das informações necessárias. Depois fiquei aguardando na sala de espera. Esse parar para observar os fluxos de pessoas que transitavam nesse espaço foi interessantíssimo. Seus corpos expressavam as dores que ocupavam centralidade. Em um buscar soluções para aliviar esse sofrimento. No começo tinham poucos, depois foi aumentando a demanda. Uma fila em certo momento se constituiu. De forma organizada são atendidos todos os sujeitos nessa busca pelo alívio de suas dores. Com muita eficiência e carinho. Uma realidade apareceu constantemente nesse esperar. A pandemia do novo coronavírus. Os indivíduos que apresentavam algum quadro de síndrome gripal eram encaminhados para um outro lugar. E essa orientação não estava muito explícita. Uma das falas que consegui escutar. Foi de uma mulher que disse: “não posso nem ficar com nariz escorrendo que já é esse vírus”. Uma comunicação em saúde mais simples e horizontal poderia ser construída para não gerar esses sentimentos de indignação. Para não ficarem transitando entre estabelecimentos de saúde. E assim, evitar um possível aumento do contágio. Entre meus vários pensares. Um dos principais era ser infectado. Meu corpo ser um vetor de transmissão.


Um estar nesse meio durante toda a manhã foi extremamente potente e significativo. Muito mais do que os quatro anos de formação nas quatro paredes da universidade. Um respirar os processos de saúde na realidade. É um dos caminhos para tecermos uma outra formação possível. É aqui na sala de espera da UPA que iniciamos um forjar do futuro profissional de saúde. Em estar no contato próximo com aquele que iremos cuidar, acolher e escutar. A universidade deve ir ao encontro da sociedade. E nesse dia me fiz presente enquanto um filho de um usuário, porém estava vivo em mim o futuro profissional fisioterapeuta. Defensor de uma saúde pública e gratuita de qualidade. Do SUS fornecendo um direito à saúde do povo brasileiro. De um Brasil que se equilibra com dor numa bicicleta alugada. Em diálogo com as palavras cantadas dos saudosos seres poéticos, Elis Regina e Aldir Blanc: “Mas sei que uma dor assim pungente/ Não há de ser inutilmente/ A esperança/ Dança na corda bamba de sombrinha/ E em cada passo dessa linha/ Pode se machucar// Azar/ A esperança equilibrista/ Sabe que o show de todo artista/ Tem que continuar”. E irei continuar na luta política-afetiva pelo esperançar na libertação para um outro mundo possível.


No início da tarde meu pai foi liberado da UPA. As medicações surtiram efeitos com o alívio das dores. Ele saiu andando sem dificuldades e retornarmos para nosso lar. Uma alegria transbordou do meu coração. O sorriso tinha ocupado centralidade em seu rosto. Seu respirar era sereno. As dores se dissolveram como se nunca tivessem habitado. Esse sinal biológico é um alerta que nos permite sobreviver. Fazem parte de nós. E devemos sempre estar atentos ao gritar dos nossos corpos. Foi um dia memorável para mim. De muita ansiedade, medo, angústia e esperança no brotar de um novo ser. Como nos comunica, Juan Arias, jornalista do ‘El País’: “As emoções são o oxigênio da nossa vida interior”. Quais emoções vocês tem cultivado em seus interiores?

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